quarta-feira, 4 de maio de 2011

Me formei em Solidão

O Tempo passou e me formei em Solidão


Sou do tempo em que ainda se faziam visitas.
Lembro-me de minha mãe mandando a gente caprichar no banho porque
a família toda iria visitar algum conhecido.
Íamos todos juntos, família grande, todo mundo a pé.
Geralmente, à noite.
Ninguém avisava nada, o costume era chegar de pára-quedas mesmo.
E os donos da casa recebiam alegres a visita.
Aos poucos, os moradores iam se apresentando, um por um.
– Olha o compadre aqui, garoto! Cumprimenta a comadre.
E o garoto apertava a mão do meu pai, da minha mãe, a minha mão
e a mão dos meus irmãos.
Aí chegava outro menino.
Repetia-se toda a diplomacia.
– Mas vamos nos assentar, gente.
Que surpresa agradável!
A conversa rolava solta na sala.
Meu pai conversando com o compadre e minha mãe de papo com a comadre.
Eu e meus irmãos ficávamos assentados todos num mesmo sofá,
entreolhando-nos e olhando a casa do tal compadre.
Retratos na parede, retrados numa cantoneira, flores na mesinha
de centro...
Casa singela e acolhedora.
A nossa também era assim.
Também eram assim as visitas, singelas e acolhedoras.
Tão acolhedoras que era também costume servir um bom café
aos visitantes.
Como um anjo benfazejo, surgia alguém lá da cozinha – geralmente
uma das filhas– e dizia:
– Gente, vem aqui pra dentro que o café está na mesa.
Tratava-se de uma metonímia gastronômica.
O café era apenas uma parte: pães, bolo, broas, queijo fresco,
manteiga, biscoitos, leite...
Tudo sobre a mesa.
Juntava todo mundo e as piadas pipocavam.
As gargalhadas também.
Pra quê televisão?
Pra quê rua?
Pra quê droga?
A vida estava ali, no riso, no café, na conversa, no abraço, na esperança...
Era a vida respingando eternidade nos momentos que acabam....
Era a vida transbordando simplicidade, alegria e amizade...
Quando saíamos, os donos da casa ficavam à porta até que virássemos
a esquina.
Ainda nos acenávamos.
E voltávamos para casa, caminhada muitas vezes longa, sem carro,
mas com o coração aquecido pela ternura e pela acolhida.
Era assim também lá em casa.
Recebíamos as visitas com o coração em festa...
A mesma alegria se repetia.
Quando iam embora, também ficávamos, a família toda, à porta.
Olhávamos, olhávamos...
Até que sumissem no horizonte da noite.
O tempo passou e me formei em solidão.
Tive bons professores:
televisão, vídeo, DVD, e-mail...
Cada um na sua e ninguém na de ninguém.
Não se recebe mais em casa.
Agora a gente combina encontros com os amigos fora de casa:
– Vamos marcar uma saída? – ninguém quer entrar mais.
Assim, as casas vão se transformando em túmulos sem epitáfios,
que escondem mortos anônimos e possibilidades enterradas.
Cemitério urbano, onde perambulam zumbis e fantasmas mais assustados
que assustadores.
Casas trancadas..
Pra quê abrir?
O ladrão pode entrar e roubar a lembrança do café, dos pães, do bolo,
das broas, do queijo fresco, da manteiga, dos biscoitos, do leite...
Que saudade do compadre e da comadre!
Esse texto nos traz recordações dos tempos passados,
quando vivíamos exatamente como descrito.

Tita Carré - Agulha e tricot

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